#OQueFicouParaTrás transforma feridas reais em um excelente terror psicológico
Lá estava eu, assistindo filmes de suspense/terror disponíveis na Netflix, fuçando, apenas observando e me deparo com algumas bombas como "Kadaver", "Truth Or Dare" e os dois "The Babysitter". Também tiveram alguns medianos como "Creep", "Ele Está Lá Fora" e "Remédio Amargo". Alguns mais interessantes como "O Homem Nas Trevas" e "Jogo Perigoso" valeram a pena ver. De repente, meio que do nada, caio em "O Que Ficou Para Trás" e CARAMBA! Que filmão! A história de um casal e sua filha fugindo da guerra no Sudão e, que no meio do processo, sofrem um grande trauma mas conseguem chegar na Inglaterra e lá precisam recomeçar sua vida, é um filme sem pirotecnias, que inverte a clássica história da "casa mal assombrada", revela segredos e deixa a nossa cabeça perturbada.
SPOILERS A SEGUIR
O diretor estreante Remi Weekes, que também escreveu o roteiro, soube usar brilhantemente o estilo suspense/terror para falar de traumas, culpas, luto e preconceito. Quando vemos filmes/séries com casas mal-assombradas, geralmente, o mal já está no lugar e essa maldição perturba os novos moradores/visitantes. Aqui, a princípio, Weekes parece seguir essa cartilha, mas logo vemos que é o contrário. Os novos moradores que trouxeram com eles terrores do passado. Poderiam ir pra qualquer lugar que os monstros os seguiriam se não o encarassem.
Na sub-trama, além dos traumas/terrores que já carregam por conta das suas histórias e que precisam lidar dentro da nova casa, Bol e Rial, fora dela, precisam lidar com uma solidariedade BEM DUVIDOSA das pessoas que agora estão ao seu redor. Seus vizinhos são estranhos, preconceituosos e desde o momento em que são deixados na casa, seus pertences, em sacos de lixo, são jogados pelo motorista no meio da rua. A casa não tem energia elétrica, está em condições precárias e eles não podem trabalhar. Assistindo me lembrei muito desses nosso tempos de quarentena, ou melhor, do início da pandemia, quando a maioria das pessoas ainda faziam quarentena. Bol (Sope Dirisu) é, digamos, mais esforçado, tenta se enquadrar e se adaptar. Vai em uma loja de departamentos e compra roupas pra ele e Rial iguais as das fotos na loja mas é seguindo pelo segurança da mesma. Em determinado momento ele diz a Rial "Nós nascemos de novo".
Rial (Wunmi Mosaku), por sua vez, parece ter mais consciência do que está vivendo. Ao contrário de Bol, não está tomada pela euforia, vai com menos sede ao pote, se apoia na suas crenças e numa cena assustadora, mas bem bonita, onde Bol a prende em casa mas ela consegue fugir, ela percebe que sua antiga casa já não existe mais. Que ela precisa seguir em frente. Em outro momento ela tenta encontrar o caminho para o hospital e a cena é brilhantemente dirigida ao transformar as ruas num labirinto e ainda mostrar Rial sofrendo preconceito por alguns adolescentes: "Volta pra África!". No hospital a médica/enfermeeira força um simpatia e uma preocupação. Temos ainda em outro momento do filme, quando ela está usando uma roupa típica e os agentes do governo saem da casa resmungando e um deles diz "Ele enlouqueceu. Elas estava usando um lençol!". Mas mesmo tudo isso acontecendo ela diz pra Bol, lá quando o filme está se encaminhando pro final: "É isso que eles querem. Eles gostam de nos ver malucos. Isso os faz se sentirem poderosos" e isso ela não diz sobre os escrotos ao redor deles (também poderia ser), mas senti que ela estava dizendo sobre os próprios monstros que os assombram.
O filme tem um gancho final interessantíssimo. Com uma surpresa muita boa, mostrando que não são apenas vítimas e que como todo ser humano, na luta pela sobrevivência, podem até ter atos duvidosos, mas os encarando, finalmente, conseguem encontrar o perdão. O perdão para eles mesmos. Juntos e derrotando esse monstro, que é mostrado de forma "real" (e achei bem simbólico), começam a aprender a viver com seus próprios traumas, erros e feridas e a partir de então seguir em frente. Inclusive conseguindo enfrentar os escrotos que estão do lado de fora. "Aprender a conviver com os próprios monstros" é uma máxima relativamente batida mas aqui é visualmente muito bem trabalhada e deixa espaço para várias reflexões.
Sope Dirisu (Bol) e Wunmi Mosaku (Rial) estão incríveis no filme e, com certeza, sem o trabalho dos dois, considerando que eles estão em 90% do tempo de tela, talvez o filme não tivesse o mesmo resultado. Excelente filme. Fica aqui a dica.